clarice sempre clarice.......
Já mencionei anteriormente que me identifico com as palavras de Clarice Lispector, Clarice a minha mais perfeita tradução..
Mas uma coincidência ......
Clarice Lispector e o amor por Lúcio Cardoso
"Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio - brilhante e sedutor -, 28. Mas era um amor impossível: Lúcio era um homossexual assumido. Havia, porém, lembra [Benjamin] Moser, um segundo impedimento: os dois eram "parecidos demais". Mesmo assim, especula Moser, foi esse amor não correspondido que levou Clarice a cultivar a solidão - condição essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Por meio de Lúcio, ela passou a frequentar as rodas literárias do "grupo introspectivo", que se reunia no Bar Recreio, no Rio de Janeiro. Chegou, assim, à poesia metafísica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendência "mística" em Cornélio Penna e Octavio de Faria, essenciais para a sua obra. Foi Lúcio Cardoso quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações dispersas, que ela tomava às tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu método." Revista Bravo!, Novembro/2009
Crônica de Clarice para Lúcio Cardoso
Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope.
Saudade eu tenho sempre. Mas, saudade tristíssima, duas vezes.
A primeira
quando você repentinamente adoeceu, em plena vida, você que era vida.
Não morreu da doença. Continuou vivendo, porém era homem que não
escrevia mais, ele que até então escrevera por uma compulsão eterna
gloriosa. E depois da doença, não falava mais, ele que já me dissera das
coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir. E ficara com
o lado direito todo paralisado. Mais tarde usou a mão esquerda para
pintar: o poder criativo nele não cessara.
Mudo ou
grunhindo, só os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam faiscado de
um brilho intenso, fascinante e um pouco diabólico.
De sua doença
restaria também o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o
matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço do jogo. Passou
a transportar para as telas, com a mão esquerda (que, no entanto, era
incapaz de escrever, só de pintar) transparência e luzes e levezas que
antes ele não parecia ter conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho
um quadro, de antes da doença, que é quase totalmente negro. A luz lhe viera depois das trevas da doença.
A segunda saudade já foi perto do fim.
Algumas pessoas
amigas dele estavam na ante-sala de seu quarto no hospital e a maioria
não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo imóvel, em estado
de coma.
Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
Antes, mudo,
ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele
fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha
adolescência. Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas
atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio que
me transformou em “mineira”: ganhei diploma e conheço os maneirismos
que amo nos mineiros.
Não fui ao
velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de mim silêncio
demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver gente: eu vira a
morte.
Estou me
lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que eu não
tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ora
vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se
comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e
onde Lúcio, Pedro e Míriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um
nos braços do outro.
Lúcio e eu
sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o
que ele chamava de “vida apaixonante”. Em tantas coisas éramos tão
fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos
nos casado.
Helena Cardoso,
você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa asa de borboleta
sem quebrá-la, você que é irmã de Lúcio para todo o sempre, por que não
escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de seus anseios e alegrias,
de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas fugas para o
humano, para os caminhos do Bem e do Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio
e por isso mesmo mais o amou.
Enquanto
escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de
música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava como em cravo a Pour
Élise. Tanto ouvi que a mola partiu. A caixinha de música está muda?
Não. Assim como Lúcio não está morto dentro de mim.
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