Vou ler....

Leitura nas férias:  recebi uma dica de leitura de um grupo que faço parte....  



 

Publicado quatro anos após sua morte em 1994, este livro é praticamente um testamento literário e filosófico do velho mestre Charles Bukowski. São trechos do seu diário selecionados por ele mesmo entre 1991 até poucos dias antes de morrer. Dramático, na medida em que mostra a aproximação do fim, O Capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio é, também, puro Bukowski: seco, cético, maldito e maravilhosamente bem escrito.




Henry Charles Bukowski Jr foi um poeta, contista e romancista de origem alemã, mas criado na América. Sua obra de caráter (incialmente) obsceno e estilo totalmente coloquial, com descrições de trabalhos braçais, porres e relacionamentos baratos, fascinaram gerações que buscavam uma obra com a qual pudessem se identificar.




Dados técnicos:

Nome: O Capitão saiu para o almoço e os Marinheiros tomaram conta do navio;

Autor: Charles Bukowski;

Ano: 1998;

Editora: L±

Tradução de Bettina Gertum Becker, ilustrações de Robert Crumb;












Análise física: Bom, com uma análise mais “estrutural”, digamos que o livro seja casual. Não sei bem o que seria um livro casual, mas... o texto é leve, períodos curtos, escrito de maneira simples. Sem muitas frescuras, sem palavras complicadas, realmente a grosso modo.

Nas primeiras 10 páginas, você ainda se sente estranho por estar lendo um diário. Depois você se acostuma. Se acostuma também com a confusão entre os parágrafos, muitas vezes, desconexos. E depois que você se acostumar a isso, recomendo começar a ler de novo, garanto que isso irá lhe garantir umas boas risadas (sério!). Se me permitem, aqui vai um exemplo:





“Agora, no meu lábio inferior e embaixo dele, há um grande inchaço. Será que estou com esse lábio gordo por ter bebido água da tigela do gato?”



Ok, talvez eu tenha rido disso por ser meio idiota. Enfim, não sei outro modo de resumir a estrutura textual do livro. É realmente um livro “leve”. Antes de começar a resenha, vou deixar um trecho que muito me agradou:





"Bem, o hipódromo estava chato e morto hoje, mas aqui estou de volta em casa e haverá um amanhã, muito provavelmente. Como consigo fazer isso?
Em parte, é o poder da rotina, um poder que mantém a maioria de nós. Um lugar para ir, uma coisa para fazer. Somos treinados desde o começo. Sair, entrar. Talvez haja alguma coisa interessante lá. Que sonho ignorante! Parece a época em que eu saía para arranjar mulheres nos bares. Pensava, talvez esta seja a certa. Outra rotina. Mesmo assim, durante o ato sexual, pensava, esta é outra rotina. Estou fazendo o que acham que devo fazer. Me sentia ridículo, mas mesmo assim seguia em frente. O que mais poderia fazer? Bem, deveria ter parado. Deveria ter me afastado e dito: "Olhe, meu bem, estamos sendo muito bobos. Somos apenas ferramentas da natureza".
- "Como assim?"
- "Quero dizer, meu bem, você já viu duas moscas fodendo ou algo parecido?"
- "VOCÊ ESTÁ LOUCO. VOU EMBORA DAQUI!"





Agora, à resenha.




É difícil imaginar um “maldito” na frente de um computador, usando pantufas, jogado à rotina e preparando-se para enfrentar a morte – pois bem, eis então “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio”, ou se preferirem, “O adeus do velho safado”. Com 71 anos, Bukowski nos mostra o horror em que está mergulhado, enjaulado na fama, preso no dia-a-dia, aplaudido de pé; um apogeu ao espírito sujo do escritor... Um último retrato existencialista.




Ok, imaginem alguém que dormiu em latas de lixo finalmente ganhar a sua fama. Eis o novo Bukowski, um tiro certeiro na testa da década de 90. Antes carteiro, agora referência cultural. Cartas, livros, fotógrafos, escritores e fãs no pé de um cansado velho com 70 anos de idade e 9 gatos para alimentar... Afinal, isso é o livro. É um último apelo, uma denúncia ao circo de horrores em que o poeta foi enjaulado – não que seja um pedido de socorro, mas talvez um causa mortis de 150 páginas.





“Estou me resguardando. Pra quê? Será que quero viver até os 80, 90 anos? Não me importo de morrer... Mas não neste ano, tá legal?”



Não consigo deixar de ver este livro como um testamento. Uma rápida olhada naquilo que sobrou de Bukowski, no pedaço que o sensacionalismo underground não devorou. É como se o velho poeta olhasse pra Humanidade e confirmasse que nada de valor foi perdido... Que ele pode morrer em paz. Esse desabafo fúnebre ocorre com o típico formato de Bukowski: uma narrativa “pobre” que evoca um olhar filosófico sobre as ações rotineiras... Neste caso, ir ao hipódromo, voltar pra casa, ser importunado, escrever e assistir à novela.





“Hoje, foi devagar no hipódromo. Minha maldita vida pendurada no gancho. Vou lá todos os dias. Não encontro ninguém lá, só os funcionários. Provavelmente, tenho alguma doença. Saroyan perdeu seu rabo no hipódromo, Fante, nas cartas, e Dostoievsky, na roleta.”



Ainda, entre as filosofias rápidas, Bukowski lembra de trechos da sua vida; seus relacionamentos com certos escritores, amigos e algumas fatalidades do acaso – sem perder o olhar analítico, critica as mentes não-tão-criativas que tentavam lhe puxar o saco. É como ver um velho escarrando após resmungar; um saudosismo de leito de morte.





“Preciso ler alguma coisa. Será que não há mais nada para ler? Acho que não. Se você achar, me conte. Não, não faça isso. Eu sei: você que escreveu. Esquece.”



Charles, Linda, o vizinho, os nove gatos e o hipódromo – não bastou mais do que isso para a última peça, para a separação final entre o poeta e o resto. “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio” é a crítica, a separação, o desgosto, a saudade e o último riso de um dos mais carismáticos malditos. Pelo visto, mesmo de pantufas, o velho ainda conseguiu achar um último traço de “beberrão” dentro de si.




Por fim... Valeu a pena ler, de verdade. Foram "horas bem perdidas" - não é exatamente um livro necessário, mas se você possui tempo livre, leia.

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