Saudade ou Saudades? Felicidade ou Felicidades?
A condenação dos tradicionalistas a uma flexão consagrada como
“saudades” se baseia num único argumento: a palavra exprime uma “noção
abstrata” e, como tal, não é enumerável. Isso é uma ideia tão antiga e
furada – e contrariada por séculos de uso – que até um prócer do
conservadorismo gramatical como Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998)
mostrou-se em dúvida sobre ela.
Em seu “Dicionário de questões vernáculas”, o famoso professor observou que ia ocorrendo com saudade o mesmo que ocorrera com parabém e pêsame,
palavras cujo singular caiu em desuso e que hoje só existem no plural.
“Já não dizemos que um dia só o plural se venha usar”, concluiu, “mas
por ora nada há que opor ao emprego da flexão numérica.” (Sobre isso,
vale a pena ler o que diz o professor Paulo Hernandes, discípulo de
Napoleão, aqui.)
Tudo resolvido, então? De certa forma, sim. Como ficar à direita de
Napoleão Mendes de Almeida em questões gramaticais acarreta a
desclassificação sumária do debatedor, poderíamos passar ao próximo item
da conversa. Mesmo assim, vale a pena falar um pouco mais sobre essa
história.
A “regra” de não levar para o plural substantivos que exprimem
“noções abstratas”, se pensarmos bem, é inaplicável de saída: tais
substantivos – como a maioria das palavras – tendem a um certo
esparramamento semântico sobre a superfície das coisas. No caso do
substantivo liberdade, ideia pura, a concretização do plural é
clara e pode evocar desde ares escandalosos, libertinos (“tomou
liberdades com a jovem”) até o verniz jurídico de cláusulas num contrato
político-social (“liberdades civis”). No caso da palavra amor, que
nomeia ainda o objeto do amor, também soa natural a flexão: “fulano
estava dividido entre dois amores”. Até aí os tradicionalistas vão. O
problema, segundo eles, são os abstratos que permanecem abstratos.
O problema verdadeiro, claro, são os tradicionalistas. Porque
simplesmente não existe um dique capaz de separar abstração e concretude
com tanta segurança. “Felicidades” pode querer dizer “votos de
felicidade”. E não é difícil perceber que saudades podem ser enumeradas:
de você, das crianças, dos nossos passeios dominicais, da infância, da comida da vovó….
Essa expansão do sentido nuclear das palavras se dá por metonímia e é
tão banal – e incontrolável – que tende a passar despercebida.
Isso bastaria para fazer picadinho de uma regra besta, mas nem sempre
a lógica da metonímia está por trás do plural de substantivos
abstratos. Um outro caminho é o da fórmula convencional, que cristaliza
a palavra numa dureza de lugar-comum, moedinha que as pessoas trocam
várias vezes ao dia. Foi o que ocorreu com pêsames e parabéns, como
observou o professor Napoleão, e é o que ocorre em frases como “mando
lembranças”, “estou com saudades”, “desejo felicidades”. Um intuito de
intensificação por multiplicação parece estar na origem de tal uso, mas o
clichê tem o efeito oposto, de atenuamento. Declarar saudades, num
plural difuso, compromete menos do que se dizer com saudade, no singular
pessoal. E desejar felicidades talvez soe mais elegante e discreto do
que desejar felicidade (como se alguém pudesse saber o que é a
felicidade para o outro). Etc.
O plural de ciúme, também bastante usado, é um caso curioso em que as
duas tendências, a da metonímia e a da fórmula, parecem se fundir,
negando-se mutuamente. Não sendo bem um lugar-comum da convivência
social, ciúme no plural ainda assim tem algo de clichê, de marcação
dramática. E não sendo coisificado pelo objeto, como amor, quem pode
garantir que não guarde um eco da multiplicidade de faces do ciúme, de
seu jeito infinito-enquanto-dure de doer?
fonte: blog/sobre-palavras/consultorio/
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